Em tempos de crise, sábios constroem pontes, enquanto tolos preferem barreiras

Não bastasse o simbolismo inerente a um super-herói negro encabeçando um elenco majoritariamente composto por atores afro-descendentes numa produção estimada na casa dos 200 milhões de dólares, Pantera NegraPantera Negra ainda inclui a frase acima num monólogo arrebatador e que comprova a coragem de Ryan Coogler como realizador.

Depois de mais de uma dezena de filmes voltados exclusivamente para o entretenimento, Coogler é o primeiro cineasta/roteirista a conseguir fazer valer sua voz dentro da Marvel, transmitindo uma mensagem universal e que ganha ainda mais importância no contexto em que é apresentada.

Pantera Negra não é “apenas um filme de super-herói”, e não digo isso de forma pejorativa, pois se o fizesse, estaria ignorando obras como ‘Batman: O Cavaleiro das Trevas’, ‘Os Incríveis’, ‘Homem de Ferro’, ‘X-Men: Primeira Classe’, ‘X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido’ e o recente ‘Logan’ (indicado ao Oscar de Melhor Roteiro Adaptado). Mas a preocupação com o discurso, a ambição de oferecer algo além do espetáculo, coloca a nova produção da Marvel entre as mais relevantes dos últimos tempos.

Escrito pelo estreante Joe Robert Cole em parceria com o diretor Ryan Coogler, o roteiro tem início com um longo prólogo – situado no início dos anos 2000 – que estabelece um paralelo entre a vida num bairro de negros e, posteriormente, à opulência do reino de Wakanda.

Apresentando uma linha narrativa que dá prosseguimento aos acontecimentos de Capitão América: Guerra Civil, onde o príncipe T’Challa (Chadwick Boseman) ainda buscava vingar a morte do pai, o longa-metragem não demora a mostrar a cerimônia de coroação do novo rei, assim como não hesita em colocá-lo em ação já em seus primeiros momentos como soberano de Wakanda, um pequeno país africano aparentemente pobre, mas que esconde um alto nível de desenvolvimento tecnológico.

Nesse contexto cultural, “reinar” também significa assumir o manto do Pantera Negra, divindade local que é venerada como guardiã da nação. Sendo assim, o, agora, Rei T’Challa precisa lidar não só com o antigo dilema de manter Wakanda longe dos holofotes (o que significaria ignorar as necessidades de povos menos afortunados), mas também com os perigos que aparecem na forma do vilão Ulysses Klaue (Andy Serkis), que planeja uma invasão com o objetivo de roubar Vibranium, que além de ser um dos pilares característicos do país, é o metal mais raro e resistente do mundo, cuja reserva é uma exclusividade de Wakanda, já que foi trazido num meteoro.

Concebendo o reino Wakandano como uma cidade imponente e inquestionavelmente futurística, o espetacular design de produção de Hannah Beachler é rico justamente por conseguir assimilar características típicas da arquitetura africana. Assim, mesmo que não soubéssemos a localização geográfica do reino, através dos traços arquitetônicos e da própria sociedade, já seria possível identificar precisamente a influência africana. Beachler merece aplausos pela imaginação de colocar grandes prédios envidraçados, carros voadores e outros elementos de ficção científica num universo onde jamais perde-se a essência. Wakanda é, de fato, uma civilização africana avançada.

Isso, claro, só funciona graças aos ótimos efeitos visuais da Industrial Light & Magic, que atribuem uma textura altamente realista ao design de produção, sem descambar para o exagero ou o caricato, falhando pontualmente apenas nas tomadas em que os atores interagem com o choram-key, evidenciando a artificialidade dos cenários à sua volta, um problema que já prejudicou (muito mais) Thor – Ragnarök.

Além disso o rapper Kendrick Lamar faz um trabalho brilhante na escolha das canções que embalam o filme, construindo uma identidade própria que dialoga diretamente com as raízes afro-descendentes da produção, trazendo um suingue extremamente estiloso e que é ecoado na competente trilha sonora do compositor sueco Ludwig Göransson que absorve ritmos típicos da África, utilizando tambores e cânticos que só enriquecem a mitologia e contribuem para uma experiência imersiva.

Já o forte elenco é liderado pelo carismático Chadwick Boseman, que agarra com unhas e dentes a oportunidade de ouro de poder interpretar um papel tão ressonante. Ao mesmo tempo imponente e simplista (não confundir com simplório), Boseman consegue ilustrar, com perfeição, a essência popular de T’Challa, um sujeito de modos simples, humildes, mas que não abandona a firmeza quando lhe é necessário.

E pequenos gestos, como ao praticamente suplicar para que a irmã não o cumprimente de forma solene, são eficazes e denotam uma complexidade ainda maior por parte de T’Challa, um rei que veio do povo e não abre mão de sua origem. Para completar, o ator também demonstra segurança nas cenas de ação, ainda que sua primeira sequência seja escura demais para compreendermos o que acontece em cena.

Já a mexicana Lupita Nyongo’o (12 Anos de Escravidão), normalmente relegada a dublagem e capturas de movimento mesmo tendo um Oscar, finalmente tem a chance de viver uma personagem forte, à altura de seu talento. Melhor amiga de T’Challa e seu interesse amoroso, Nakia é uma jovem que aprecia a ação, mas que também tenta esconder uma doçura tão grande quanto sua generosidade por trás da máscara de uma guerreira durona. Lupita é outra que não tem dificuldades nas sequências de ação, despertando uma genuína perplexidade por ser tão mal aproveitada em Hollywood.

Enquanto isso, Michael B. Jordan (‘Quarteto Fantástico’), parceiro de longa data do diretor, exala fúria como o revoltado Erik, sempre deixando claro suas intenções. Aliás, suas motivações comovem e inspiram reflexão, visto que são um reflexo (mesmo que extrapolado) da realidade enfrentada por tantos negros nos Estados Unidos e que, aqui, ainda servem para estabelecer uma ligação com os próprios conflitos gerados pela postura do reino de Wakanda, que em prol da manutenção do estilo de vida de seu povo, esconde-se numa fachada pobre, escorando-se numa passividade que fecha os olhos para nações pobres e tão carentes de assistência. Completando o elenco secundário, Danai Gurira (a Michonne da série The Walking Dead), notória pela inexpressividade, surpreende ao oferecer uma performance marcada pela força e, principalmente, pela lealdade de sua personagem, ao passo que Daniel Kaluuya (Corra!) tem pouco tempo para demonstrar seu talento, e Martin Freeman tira leite de pedra como o agente Ross, beneficiando-se de seu carisma habitual.

O que nos leva ao apoteótico terceiro ato que, mesmo acomodado preguiçosamente entre convenções clássicas (quando um líder nega ajuda, fica óbvio que durante o conflito ele surgirá de forma emblemática, revelando-se um artifício batido e previsível), envolve e empolga, muito em função da boa condução das várias batalhas – que acontecem simultaneamente e em grande escala – mas também graças ao fato de nos importarmos com os personagens envolvidos, o que comprova o bom trabalho no desenvolvimento de cada um. Para completar, o script utiliza a consagrada estrutura narrativa que, mais recentemente, marcou Avatar, num esforço que, mesmo carecendo de originalidade, é empregado de forma eficiente.

Encerrando a história com o memorável discurso citado no primeiro parágrafo, Pantera Negra é um filme de origem que beneficia-se do fato de já termos conhecido-a em ‘Capitão América – Guerra Civil’, o que abriu espaço para uma trama sem amarras formulaicas, permitindo ao cineasta Ryan Coogler a criação de uma das histórias mais marcantes do universo dos super-heróis, comprovando (mais uma vez) que é possível ter ambição num projeto voltado para o entretenimento.

Observação: Há duas cenas pós-créditos.

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Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...