CAPA SEM FIO FRASESA história por trás da produção de Alguém Qualquer se funde à narrativa contada com bastante cuidado pelo jovem cineasta Tristan Aronovich. Sem nenhum apoio governamental ou com recursos levantados em leis de incentivo, o longa foi inteiramente custeado pela Latin American Film Institute após vencer duros desafios para que fosse realizado. O resultado do trabalho é, até agora, quatro prêmios internacionais. Ou seja: assim como seu protagonista, Alguém Qualquer vence a invisibilidade e conquista seu espaço com os recursos que tem.

Responsável pelo roteiro, direção, trilha, som e montagem, Tristan também interpreta o protagonista Zé, um faxineiro em um prédio de classe média alta em São Paulo que acolhe a prima em sua casa, uma garota chamada Jandira (Amanda Maya), que, como muitos habitantes da cidade, vem em busca de oportunidades e sonhos. Diagnosticado com uma grave doença que lhe permite apenas seis meses de vida, Zé vive um inesperado romance com a prima e, como é bastante recluso no trato com as pessoas, sente dificuldades em lidar com as consequências de um relacionamento amoroso.

Há muita coisa boa que pode ser apontada no trabalho de Tristan. Zé não é um personagem fácil de interpretar. De poucas palavras e com repetitivos tiques e interjeições, nunca conseguimos ler as expressões do personagem, que parece sempre sorrir, o que limita demais o trabalho do ator ao passo que dá outras opções para que ele explore o personagem, como os raros momentos de espontaneidade que Tristan aproveita com segurança (gosto muito da reação de Zé ao saber que terá “outro final de semana”). Além disso, abre espaço para o figurino de Juliana Gregoratto e Fabiola Sciacovelli, que ajudam Tristan a evoluir seu personagem quando empregam vermelho e verde em momentos diferentes do arco narrativo do protagonista, cores que remetem diretamente ao que acontece no segundo e no terceiro ato. Amanda Maya também entrega um trabalho à altura da personagem, funciona muito bem nos momentos mais cômicos do filme e surpreende com a intensidade que dá aos momentos mais dramáticos.

A atriz também é responsável pela direção de arte e constrói muito bem a condição limitada de onde sua personagem vive com o primo. Os elementos de cena usados para ajudar a mover a narrativa funcionam muito bem. Como exemplo, note o que acontece com as maçãs oferecidas no café da manhã e o que Zé faz com os artigos de vime. Se antes de viver com a prima Zé apenas consertava peças artesanais, note o momento em que ele passa a criar novos produtos. Isso é literal, mas é também algo subjetivo do protagonista, que aparentemente nunca pudera construir nada na vida. A sutileza de como isso é usado merece crédito e tem ecos em toda a estrutura do filme.

Alguem qualquer

A fotografia acerta na construção da humildade onde os personagens passam a maior parte do tempo juntos e também funciona bem quando cria o contraste com o condomínio tão branco que chega a ser opressivo. Gosto, por exemplo, de quando os cinematógrafos usam a iluminação do quarto do Zé pra mostrar que nada muda na vida do protagonista. Note quando Zé apaga o abajur antes de dormir e outra luz externa mantém o quarto iluminado, como se não fizesse a menor diferença deixar a luz acesa. Há uma função narrativa na repetição dessa e de outras sequências que fica bastante clara ao final do filme, mas fica um pouco a sensação de que algumas poderiam ficar de fora para deixar o filme mais ágil. Talvez isso tenha acontecido porque o próprio diretor/roteirista fez a montagem (com boas transições sonoras, inclusive) e não quis abrir mão de alguns planos.

No entanto, o problema maior do filme reside na mixagem. Tanto os diálogos quanto todo o desenho de som acabam prejudicando sensivelmente todo o cuidado tomado com os elementos citados nos parágrafos anteriores. O primeiro diálogo entre Jandira e Zé quebra um pouco do clima e um público pouco atento aos pontos positivos pode condenar o filme, pois até mesmo as interjeições do protagonistas soam cansativas (e não é por conta da interpretação, é, sim, mixagem). Detalhes importam. A altura dos sons dos grilos na sala ou mesmo um sutil detalhe de uma rolha ser arrancada de uma garrafa de vinho como se fosse de uma garrafa de champanhe incomodam bastante. Há também problemas de sincronia das falas dos atores e durante o ato final percebemos a leitura de um texto. Cuidados finais de um cineasta cansado de tudo o que fez e de tudo o que conquistou com méritos.

O importante é o que Tristan quer dizer com seu filme. O diretor parece dizer com seu longa-metragem como as pessoas se tornam invisíveis em multidões, sem que isso exclua o tamanho que são por dentro, capazes de construir coisas maravilhosas para outras pessoas por pura humanidade. E isso ele consegue transmitir ao optar por planos que acentuam o isolamento do faxineiro em seu local de trabalho, ao mostrar que as pessoas em seu trabalho mal sabem o nome de Zé e também quando replica sequências do cotidiano do protagonista, de quando vai dormir até o momento que chega no trabalho, passando pelas estações de trem e longas caminhadas até seu “serviço”, sua única preocupação, e ainda assim encontra um grande feito.

http://youtu.be/DqCcsD45aiA

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Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

2 Comments

  1. cassia gomes

    Um filme extraordinário. Consegui assistir e agradeço a Deus por isso.

  2. Filme maravilhoso! Interpretação maravilhosa! O Zé me comoveu muito! Assisti por acaso procurando algo descente na TV pra passar o tempo! Eu fico imaginando o quão solitário o Zé se sentia e ainda maus sabendo que sua vida seria breve! O quão bom seria se as pessoas ou a pessoa que são tão próximas a nós nos enxergasse além das palavras! Para mim, o Zé falava pouco mas dizia muito. Muito mesmo! Que pena a Jandira tê-lo deixado sozinho! Me comoveu demais sua solidão e sua morte! Meus parabéns Tristan!
    Eu sou Ivete. Tem de enfermagem e defensora dos animais – defensora da vida!