divertida mente cartazÉ possível afirmar que Divertida Mente é o filme mais inspirador dos últimos anos. É claro que não vi tudo o que foi feito, mas certamente dos que vi é o que mais trouxe reflexão sobre nosso comportamento, sobretudo na fase da vida onde começamos a descobrir quem somos e não só quem gostaríamos de ser.

Mais um acerto da Pixar, que já está com as duas mãos nas premiações de animação (e acho justo que o filme concorra a Melhor Filme, Melhor Diretor, Roteiro Original e as categorias de som dos principais festivais). Divertida Mente conta como as cinco emoções Joy (Alegria), Sadness (Tristeza), Anger (Raiva), Fear (Medo) e Disgust (Nojinho) regem nosso cérebro. Aqui, o cérebro é da jovem Riley,que acompanhamos desde seu nascimento até seus onze anos de idade, quando os pais decidem mudar de Minnesota para São Francisco. Mantê-la sob controle durante essa mudança toda é o grande desafio dos cinco sentimentos, sobretudo da protagonista Joy, principal responsável pela alegria predominante na infância da menina.

O roteiro original é de Josh Cooley, Meg LeFauve e Pete Docter, este que também dirige ao lado de Ronaldo Del Carmen. Coeso, fluído e emocionante, a maior parte do roteiro concentra na transição da infância para a adolescência. É isso que há de mais cativante. Ainda que todas as ações dos personagens principais busquem manter tudo como está, nós adultos sabemos que todas as tentativas de Joy tendem a ser frustradas pela infalível ação do tempo.

Não é de se espantar que toda a construção colorida e alegre da infância dará lugar a um novo mundo que precisa ser reconstruído com a predominância de outros sentimentos, já que a alegria nem sempre poderá decidir ações quando enfrentamos situações difíceis cada vez mais recorrentes à medida que crescemos. Com profundo respeito a isso, os roteiristas mostram essa transição, sem perdoar personagens cativantes e sem ignorar a importância de cada elemento que compõe a história, por mais que sejamos tentados a fugir de sentimentos e lembranças que aparentemente nos fazem mal. Sem travar a narrativa e sem perder o tom divertido, o roteiro chega a investir um bom tempo em um diálogo que sugere a luta da Alegria contra a depressão, o que mostra o quão maduro e importante é esse trabalho.

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A construção do universo complexo (é um cérebro, oras) é feita de modo que o espectador de qualquer idade consiga imediatamente associar o que cada divisão representa. Nos primeiros minutos somos apresentados a esse mundo: logo atrás dos olhos fica a sala de controle, onde os cinco sentimentos comandam as nossas reações; depois de um largo abismo (que não vou dizer o que é) ficam nossas memórias, a Terra da Imaginação e uma enorme construção fechada onde o abstrato prevalece (e onde vemos o momento mais inspirado do filme); acima do abismo (que é a grande sacada da história e pelas quais os roteiristas movem a história) estão as Ilhas da Personalidade, pequenos mundos dentro no nosso cérebro que são criados por momentos marcantes da vida e que precisam ser alimentados pelo mesmo sentimento que os gerou para que se sustentem.

Como se trata do cérebro de uma criança, o design de produção de Ralph Eggleston investe em cores vibrantes pra todo lado em contraste com o mundo pálido e sem vida de São Francisco. E é um trabalho excepcional. Já dentro do cérebro, os cenários acentuam as divisões tanto através das cores quanto do uso de sombras por vezes iluminadas pela aura que contorna o corpo de Joy, mais um interessante simbolismo.

Entre tantos cenários maravilhosos, a Pixar ainda encontrou um espacinho para homenagear o cinema, esse mundo de sonhos que nos traz momentos deliciosos como este filme, mas também tantas outras histórias que nos causam aflição, medo, angústia e etc.. Outro destaque digno de nota nesse world building é o desenho de som, sobretudo quando ouvimos sons de bexiga esfregando umas nas outras, papéis de bala amassados, aspiradores de pó e roncos de uma figura realmente aterrorizante que domina um lugar no cérebro que nenhum de nós gostaria de visitar.

Apesar do arco principal se passar na cabeça da menina, podemos rapidamente ver a mesma sala de controle na cabeça da mãe e do pai. Por trás das tiradas engraçadinhas que a cena toda rende, o departamento de arte trata de jogar dezenas de informações na tela que dizem muito sobre a construção da cabeça dos pais. Se estivermos atentos a esses sinais, perceberemos que as memórias recentes da garota passam a mudar de cor ao longo da narrativa, perdendo o amarelo que representa a Alegria. Na sala de controle da mãe, percebemos que as cores predominantes das memórias correspondem à Tristeza e Medo, logo atrás de uma cortina que mostra a perfeita organização da sala. Já o pai tem sua sala de controle repleta de memórias recentes com as cores de Raiva, Medo e Tristeza.

Além disso, percebemos que não é a Alegria que lidera o grupo dos cinco sentimentos nas cabeças dos pais, mas Tristeza na cabeça da mãe e Raiva na cabeça do pai. Isso é tão importante na construção dos personagens, pois sugere que há uma rotatividade na liderança que determina as ações de cada um, o que imediatamente indica como ambos têm reagido durante aquele momento específico da vida. Aliado a isso, o figurino de cada um desses personagens indica ainda um pouco da personalidade um tanto conservadora dos pais, outro contraste acentuado pelo figurino despojado dos cinco sentimentos na cabeça da filha.

INSIDE OUT – Pictured: Joy. ©2015 Disney•Pixar. All Rights Reserved.

Arrisco dizer aqui que há uma sutil sugestão da sexualidade da garota, pois todas as vezes que vemos os personagens dentro do cérebro dos pais, claramente vemos figuras femininas na cabeça da mãe e figuras masculinas na cabeça do pai. Logo, é possível dissertar acerca do que significam três figuras femininas e duas masculinas na cabeça da menina (sendo que as duas masculinas representam justamente o medo e a raiva). Se a Pixar corajosamente definiu a bisexualidade da menina com essas figuras desde o nascimento, seria genial da parte deles. Provavelmente nunca saberemos.

Por fim, é um filme excelente para se estudar semiótica, pois todos os sinais, símbolos e alegorias presentes conseguem fisgar todo tipo de espectador. Se for uma criança, além de se divertir com a construção da mente de Riley, sem dúvida se recordará dessa história quando sua infância começar a se despedir. Se o espectador for adolescente, criará imediatamente uma empatia com a garota e poderá refletir sobre as mudanças que enfrenta diariamente. Já um adulto, certamente se emocionará com a melancolia que toma conta das nossas memórias mais íntimas com uma mistura de emoções e invariavelmente tentará sem sucesso resgatar aqueles que nos acompanharam durante tanto tempo. E se for pai ou mãe, terá a rara oportunidade de ceder um precioso tempo para pensar nas Ilhas de Personalidade que são construídas na cabecinha dos filhos.

Mas não acaba aqui: é um filme para ser revisto em diferentes fases da vida. Divertida Mente tem o poder de mudar vidas. Ou melhor, de forçar reflexões. E aí sim mudar vidas.

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

1 Comment

  1. cesar baldon

    Parabéns pela análise, assisti ao filme (duas vezes, com muito prazer) e de alguma forma identifiquei os símbolos que você indicou.