cartaz_hipoteses_64x94Qualquer pessoa que habite uma metrópole está sujeita a sentir o peso da cidade nos ombros durante um período da vida. Algumas começam a sentir esse peso cedo, outras são agraciadas por um longo período de férias que começa no nascimento até que a vida real lhe mostre o que de fato acontece em uma sociedade formada por uma infinita combinação de personalidades e suas ações e reações.

A maioria de nós acaba sentindo esse peso quando nos aproximamos da vida adulta e o carregamos até o fim. E durante esse trajeto, passamos por constantes e paradoxais experiências de profundo isolamento, mesmo quando estamos rodeados por dezenas ou milhões de pessoas.

Esse é o retrato que Hipóteses para o Amor e a Verdade faz da cidade de São Paulo, uma produção nascida no teatro, a primeira da Companhia de Teatro Os Satyros, de onde saíram todos os atores do filme. Com o olhar clínico do produtor, roteirista e ator Ivam Cabral para situações que nos levam às bordas dos nossos sentimentos, acompanhamos diversas situações de espera do amor e do afeto, de busca por identidade, prazer, vingança ou simplesmente pela esperança de um dia ser uma pessoa diferente.

O roteiro investe em narrativas paralelas que sutilmente se cruzam para compor, através dos detalhes de cada uma dessas histórias, esse retrato da sociedade paulistana que molda seus habitantes antes mesmo que consigam decidir por si mesmos se realmente querem ser o que são.

Nesse sentido, é impossível não comparar esse belíssimo filme com Crash, dirigido por Paul Haggis e vencedor do Oscar de Melhor Filme de 2004. Guardadas as devidas proporções de produção e investimento, Hipóteses para o Amor e a Verdade é para São Paulo o que Crash foi para Los Angeles.

Assim, personagens tridimensionais são explorados com habilidade pelo roteiro, como uma mulher que abriria mão da prostituição se pudesse manter os momentos de prazer ou mesmo o sujeito que durante o dia é apenas mais um funcionário de uma grande empresa de embalagens para se entregar e gastar o dinheiro que ganha na luxúria todas as noites, que é, aparentemente, quem ele deseja ser.

Entre tantos arcos dramáticos muito bem elaborados, Cabral mostra as consequências trágicas colaterais de quando partimos em busca desses nossos desejos. O roteirista acerta ao retratar o isolamento e a solidão de uma senhora vítima de um AVC em um grande apartamento, com um tocante momento em que sua cuidadora liga para o filho perguntando se ele “tem alguém pra indicar” para o jantar de aniversário da senhora condenada ao esquecimento por causa de sua doença.

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Cabral vai mais longe: cria ecos no isolamento forçado de pessoas que buscam companhias virtuais em meio a mensagens automáticas de robôs que prometem sexo e outras pessoas igualmente carentes de qualquer tipo de afeto e companhia, mesmo que seja para uma simples conversa tentando encontrar motivações para viver ou coragem para se matar. É como se procurássemos o tempo inteiro por pessoas prontas para nosso consumo, já embaladas (aqui, literalmente) e entregues em nossas casas.

A direção é de Rodolfo García Vázquez, também produtor executivo do filme. O diretor investe em planos detalhe e movimentos de câmera que acentuam a profundidade dos personagens que são, ao final, anônimos que somam milhões de habitantes previsíveis de acordo com as estatísticas lançadas no início de cada um dos três atos (um raro exemplo de narração off que funciona bem). E quando decide quebrar a quarta parede, o diretor suga o espectador para o filme, afinal, em qualquer cena poderia estar um de nós. Os bons planos do diretor favorecem o excelente trabalho de montagem de Letícia Simões, que dá ritmo ao filme, optando por utilizar raccords de movimento sempre que pode, que por sua vez ajudam a mostrar o quão próximos estão os personagens e suas histórias.

A cinematografia de Laerte Késsimos é outro ponto positivo do filme. Note como Laerte emprega cores dessaturadas onde paredes e móveis brancos nos apartamentos e escritórios parecem oprimir os personagens que buscarão consolo em uma boate mergulhada em sombras e poucas luzes verdes e roxas destacando elementos surreais entre entusiastas da noite paulistana. Esse contraste funciona e é complementado pela trilha angustiante de Marcello Amalfi que se estende muitas vezes entre as sequências de diferentes núcleos narrativos, o que ressalta o sentimento de que todos estão ligados por algo sem que percebam, já que estão reclusos e isolados cada um à maneira que lhe é imposta.

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Aliás, o desenho de som passa por detalhes maravilhosos. A começar pelo prólogo onde ouvimos o coração de um bebê na ultrassonografia que fará uma bela rima com o final, passando pelo momento em que ouvimos um irritante alarme sonoro de uma porta aberta, sugerindo ser o som constante na cabeça de uma mãe que perdeu o filho.

É uma obra rica em detalhes. É uma obra que acende uma discussão importante sobre a individualidade que vem tomando conta dos habitantes da nossa cidade. Ao mostrar o isolamento como consequência, os produtores alertam para o individualismo como causa, pois algumas de nossas buscas tendem a nos afastar do que temos de mais importante. Ao sair do cinema, o espectador verá o filme em cada metro quadrado da cidade. Verá na multidão de pessoas solitárias aquelas em agonia e perto de sofrer a pressão da sociedade. Perceberá, então, que nenhuma delas precisaria estar ali. Se tivesse asas.

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

1 Comment

  1. Johnny Menacci

    Um filme muito rico em detalhes e muito bem roteirizado. Feliz estreia dos Satyros no cinema. Amei!