Viver em São Paulo, ou em qualquer metrópole desse tamanho, faz com que cheguemos ao nosso limite físico constantemente e de tempos em tempos nosso estresse diário nos leva além – e naturalmente cada um de nós encontra maneiras diferentes de extravasar e liberar a tensão que acumula no cotidiano. O bom filme do diretor Paulo Sacramento, que também assina o roteiro, aborda como quatro personagens reagem a essa carga que a cidade coloca sobre nossos ombros e qualquer pessoa que já tenha sentido esse peso poderá se identificar já nos primeiros momentos do longa.

Eficiente ao mostrar a diversidade em São Paulo, Sacramento mistura poesia, jazz e psicodelia, o velho e o novo em contrastes sociais sem barreiras para a tridimensional Renata, muito bem interpretada por Simone Iliescu, que se divide em dois relacionamentos com dois sujeitos completamente diferentes: Marcelo (Roberto Audio) é um jornalista ligado à arte e Carlos (Lee Taylor) é um ex-ladrão de automóveis. O quarto, pela cidade, o menino de rua Exu (Vinicius dos Anjos). Ao longo de breves e intensos 79 minutos de projeção, vemos Renata saciar seus variados desejos com os dois namorados, enquanto acompanhamos parte das angústias que experimentam e que não podem mudar, pois, como sabemos, são inerentes à cidade.

Com isso, posso apontar que a cidade é o protagonista dessa história, sempre presente e engolindo os personagens com sua força onipresente tão bem imposta pelo excelente trabalho de design de som ao envolver o espectador com todos os ruídos insuportáveis de São Paulo, como ônibus, helicópteros, motos barulhentas, carros, trens e, em especial, um caminhão de lixo triturando uma árvore, em um plano cheio de simbolismo sobre a relação metrópole-natureza – e nos incluo neste termo.

A direção de arte faz um bom trabalho ao apresentar os contrastes entre os namorados de Renata já a partir dos ambientes onde vivem, o que nos mostra um jornalista metódico em cada uma de suas atividades (registradas por Sacramento em muitos planos detalhe) e um ambíguo Carlos, um sujeito explosivo e completamente avesso a qualquer convenção social que é capaz de abrigar em sua própria casa um menino de rua. E com isso em mãos, o diretor acertar ao criar planos exclusivos para construir e desconstruir a sensação de controle que os dois acreditam ter da própria vida, como no longo plano de ratos comendo os jornais antes da distribuição nas casas das pessoas depois de ter mostrado Marcelo tomar café da manhã enquanto lia seu periódico.

Equilibrando a narrativa entre a beleza estética incluindo obras de arte nas sequências de Marcelo e planos subjetivos perturbadores no arco de Carlos, podemos compreender mais sobre os desejos de Renata, que sim se alimenta do mundo cultural que o jornalista lhe proporciona ao passo que não hesita se entregar ao sexo com Carlos, mas ao mesmo tempo tenta tirar os dois dos vícios cotidianos onde mergulharam suas vidas. Para isso, Sacramento chega ao detalhe de usar a janela do apartamento de Marcelo para transformá-lo em um quadro através de um movimento muito especial de câmera e, em outro momento, mostra os sentimentos de Carlos alternando planos curtos de motocicletas em um globo da morte e pés caminhando sobre brasas.

Livre pelas ruas, mas preso pela sua condição de menino de rua, Exu vaga pela cidade cometendo ações justificadas apenas pelo seu o ódio natural que cresce ao ver o mundo a sua volta. Narrativamente, Exu estabelece um interessante paralelo com Renata que, de forma diferente, também vaga entre os mundos de Marcelo e Carlos para saciar seus monstros internos, enquanto o garoto encontra no vandalismo gratuito uma forma de responder ao mundo que vive. Assim, quando vemos o menino encarar um leão enjaulado não podemos deixar de pensar que ali Sacramento sinalizou mais um plano subjetivo, pois dentro de todos aqueles personagens havia algo de selvagem muito mais forte do que eles. Na mesma sequência, o diretor tem o cuidado de posicionar a câmera dentro da jaula para mostrar o menino que mesmo do lado de fora está constantemente atrás de grades, enquanto Renata, em outro plano, é enquadrada sem foco quando corre sem rumo após um evento que a transtorna para mostrar que é mais uma pessoa sem rosto no meio de tanta gente.

Assim, investindo em muitas alegorias e consciente do belo material entregue, Sacramento discute um pouco a relação da arte na voz de Marcelo Grassmann como “testemunho de suas incapacidades”, um oásis em meio a uma perturbadora narrativa sobre uma cidade que esmaga aqueles que a sustentam, mas que permite obras como Riocorrente para refletir e denunciar a realidade.

Riocorrente

Elenco: Lee Taylor, Simone Iliescu, Roberto Audio
Direção e Roteiro: Paulo Sacramento
Direção de Fotografia: Aloysio Raulino
Direção de Arte: Akira Goto
Produção de Elenco: Patrícia Faria
Efeitos Visuais: Vetor Zero / Lobo
Montagem: Idê Lacreta e Paulo Sacramento
Som Direto: Thiago Bittencourt
Edição de Som: Ricardo Reis
Música: Paulo Beto
Mixagem: Armando Torres Jr
Colorista: Fernando Lui Latorre
Produção: Clarissa Knoll, Pablo Torrecillas e Paulo Sacramento

 

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Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

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