O Teorema Zero é um retrato da nossa época sob uma camada de ficção científica retrô. Mais um excelente filme de Terry Gilliam, bem na linha de trabalhos anteriores como Brazil (1985) e Os 12 Macacos (1995), o filme acompanha um sujeito solitário que um dia recebe a tarefa de decifrar a problema que dá título a produção e, no processo, é auxiliado pelo seu supervisor Joby (David Thewlis), a garota Bainsley (Mélanie Thierry), a psicóloga virtual Dra. Shrink-Rom (Tilda Swinton) e o garoto Bob (Lucas Hedges), filho do “Gerente” vivido por Matt Damon.

Tal protagonista é Qohen Leth, vivido com a habitual intensidade de Christopher Waltz, sujeito que se entrega a um trabalho repetitivo por acreditar que um dia receberá uma ligação que nem ele sabe bem de onde virá. Com muitas críticas ao modo que nossa geração interage através da tecnologia, Gilliam apresenta uma leitura cínica da sociedade contemporânea ao expor a relação de trabalho, a propriedade privada e os meios de comunicação voltados para o consumo, com propagandas que literalmente seguem o indivíduo pelas ruas a fim de persuadi-lo a ficar rico ou a seguir uma religião que tem Batman como salvador – detalhes absurdos que enriquecem a trama e garantem o equilíbrio cômico de Gilliam, já presente em trabalhos anteriores como Monty Python.

O uso da tecnologia nesse mundo concebido no roteiro de Pat Rushin mostra um pouco da decadência de uma geração pós-redes sociais. A conectividade e os dispositivos móveis são elementos narrativos explorados de forma bastante negativa se observarmos os impactos que podem causar no nosso modo de vida. Isso fica claro em uma festa cheia de gente que pouco interage entre si, todas com fones de ouvidos e olhando para seus tablets sugerindo que cada um ouve a própria música ou no mínimo conversando com pessoas que não estão no mesmo lugar, o que anula toda a razão de participar de uma festa – e aqui temos um exemplo do paradoxo do teorema discutido pelo filme.

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Outro impacto dessa relação social com a tecnologia está presente na construção dos personagens. Qohen é incapaz de assumir sua individualidade e sempre se refere a si mesmo como “nós”, já que acredita ser parte de uma coletividade, o que é outro conceito interessante desenvolvido na história. Aqui vale citar o figurino do protagonista que nunca nos permite associá-lo a essa coletividade de Joby e Bainsley e assim podemos entender, através da mudança de roupas, o exato momento em que estes coadjuvantes sofrem uma virada radical nos seus respectivos arcos dramáticos. Mélanie Thierry como Bainsley entrega uma excelente atuação de uma personagem caricata que resume muito bem em uma linha de diálogo o que estamos perdendo ao mergulharmos nossas vidas em mundos virtuais. Em um raro momento de fragilidade da prostitua on line, ela diz “preciso que precisem de mim”, o que compõe uma belíssima contradição com o personagem de Waltz quando ele diz “estou sozinho, mas não solitário”, pois ambos se completam quando conectados.

A direção de arte faz um trabalho espetacular na concepção da igreja como residência de Qohen em muitos outros detalhes. Sempre em contraste com o mundo colorido e cheio de luzes nas ruas, Gilliam aponta a decadência das ideias religiosas sem precisar confrontá-las. A igreja é um imóvel perdido para uma companhia de seguro (o que já sugere a falência da instituição), livros são empilhados sobre os bancos em uma clara substituição da ignorância pela sabedoria naqueles assentos, o computador no altar onde padres pregaram missas sugere que ali a tecnologia prevaleceu sobre a religião e, talvez a alegoria mais forte de todas, Jesus Cristo com uma câmera no lugar da cabeça resgata a ideia de que sempre há algo nos monitorando o tempo todo. Além da residência de Qohen, a fotografia de Nicola Pegorini ainda desempenha um papel fundamental em outro momento quando emprega a artificialidade do cenário de forma competente e orgânica.

O filme não se resume às críticas e às situações cômicas acentuadas pelo figurino dos personagens e referências a outras produções cinematográficas. O longa metragem de Gilliam faz interessantes perguntas sobre nossa existência e acerta em cheio na maneira de retratá-las. A começar pelo plano inicial onde um buraco negro engole o que está em volta. Então o diretor afasta a câmera para revelar uma tela de computador operado por Qohen dentro de sua igreja. Em poucos minutos, Gilliam transborda simbolismos. Ao escolher uma igreja aos pedaços como cenário principal, o diretor remonta o objetivo dos antigos erigirem templos, pois as construções eram feitas a partir da compreensão do universo em seu tempo para lembrar os adeptos de que aquele “templo” também deveria estar na consciência e assim fechar um ciclo entre o micro e o macrocosmo. Não é por acaso que vemos a disposição das lâmpadas no cenário como se fossem outras constelações também em torno do buraco negro inofensivo ali dentro da tela do computador. O momento em que descobrimos o que existe na consciência do protagonista fecha um belo ciclo com esse plano inicial. Outro grande momento inspirado é quando outro personagem rabisca sua teoria sobre o teorema zero em um afresco que simboliza o inferno. Perceba a inteligência de Gilliam na escolha das cores durante toda essa sequência, além da relação entre o inferno e a solução do teorema.

É uma ótima ficção científica que faz um audacioso registro do nosso tempo. Sem dúvida ainda estamos aprendendo a lidar com nossa privacidade em um mundo que nos puxa para uma coletividade quase sem sentido e onde encontramos mais diferenças do que semelhanças. Optamos nos expor, mas não queremos que cuidem de nossas vidas. Queremos participar de redes virtuais para atacar o que julgamos ser os defeitos dos outros em vez que procurar trocar experiências boas. Ou ainda pior: criamos personagens virtuais, aquilo que gostaríamos ser e passamos horas investindo nessa fantasia em vez de explorar o mundo pronto e cheio de espaço para conquistas e prazeres reais. Não seria esse o nosso teorema zero?

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O Teorema Zero – The Zero Theorem

Direção: Terry Gilliam
Elenco: Cristoph Waltz, Matt Damon, Tilda Swinton, Mélanie Thierry
Origem: Estados Unidos, Romênia
Classificação: 14 anos
 

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Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

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