Praia do Futuro é um belo filme sobre família. E é com muita coragem que este tema é retratado a partir de um ponto de vista tão atacado pela nossa sociedade que ainda insiste em impor regras de como uma família deve ser constituída, ignorando que o amor, a compreensão e o respeito às diferenças estão acima de características físicas, condições financeiras, credos e sexualidade.

Com excelentes interpretações de Wagner Moura (Donato), Clemens Schick (Konrad) e Jesuíta Barbosa (Ayrton), o filme narra a história de um bombeiro salva-vidas de uma praia cearense que decide mudar a vida ao conhecer um turista alemão durante um resgate. E para contar essa história, o diretor Karim Aïnouz não poupa quadros impactantes, já que boa parte dos conflitos apresentados durante a projeção ainda são, infelizmente, vistos a distância e com preconceito por muita gente. Por essa razão, é inteligente causar o primeiro impacto com uma trilha sonora inquietante durante os créditos iniciais e, assim que acaba a música, uma tentativa de resgate em alto mar que resulta em uma vítima de afogamento. A partir daí, vemos uma história de amor verdadeiro entre dois homens, com conflitos reais que qualquer relação sincera está sujeita a enfrentar.

Usando a linguagem audiovisual a favor da história, durante todo o primeiro ato somos envolvidos pelo som do mar, indicando que algo sufocante arrastaria Donato a uma decisão que afetaria sua vida pra sempre. Somado a isso, constantemente vemos planos abertos mostrando o oceano soberano sobre tudo o que está em tela. Com essa construção visual, é possível entender bem a expressão corporal que Wagner Moura emprega no momento em que todos os colegas bombeiros correm para o mar ao final de um treino diário, enquanto ele caminha lentamente, afastando-se dos companheiros, da sua profissão e da presença constante de uma força ainda maior que poderia lhe tirar a felicidade, o que interpreto como a homofobia que enfrentaria se assumisse sua sexualidade no universo que vive. E aqui reside um dos méritos do filme: não se trata de uma discussão sobre homossexualidade, que é tratada com a devida normalidade, fazendo com que o fato do protagonista ser gay seja apenas mais uma das muitas características de Donato, sem ignorar os obstáculos que qualquer outro ser humano enfrentaria por causa de sua orientação sexual. Ao contrário, Praia do Futuro mostra essa história de amor entre Donato e o alemão Konrad de forma orgânica na narrativa e concentra todo o peso nas consequências da separação familiar anos depois da decisão do protagonista quando reencontra seu irmão mais novo, Ayrton, depois de muitos anos longe do Brasil.

Todo trabalho técnico, sobretudo cenários e figurinos, acompanha a evolução da história com muita segurança. Dessa forma, faz todo sentido empregar verão, outono e inverno nos primeiro, segundo e terceiro atos respectivamente, mesmo que não sejam estações do mesmo ano, tampouco nos mesmos lugares, para simbolizar os sentimentos do personagem de Wagner Moura. E se na Praia do Futuro Donato surgia constantemente vestindo o uniforme vermelho da sua profissão, já em Berlim o figurino mostra um personagem branco e preto, mas sempre fotografado próximo de elementos vermelhos como um capacete, um banco na praça em um parque gramado, um quadro de aviso, luzes na discoteca e mesmo o uniforme em um jogo de basquete infantil, sempre remetendo às cores do seu passado de salva-vidas. São elementos que se perdem de maneira justificada no terceiro ato quando o personagem, já completamente afastado de suas raízes e integrado na nova cultura, responde pelas decisões do passado ao encarar tudo o que deixara pra trás para seguir em busca de sua felicidade.

E se o som do mar era predominante em todas as sequências no primeiro ato, assim que passamos a acompanhar a história em Berlim, passamos a ouvir sons de transportes metropolitanos, o que reforça a mudança completa na vida de Donato. É importante destacar esses elementos na análise, pois no terceiro ato tudo se funde com uma beleza estética marcante, já no inverno alemão, quando em um cenário que sugere uma parada total do tempo (repare os adesivos de aves em um vidro na praia fria alemã) as pontas são amarradas com um desfecho que me sugere o mais belo conceito de família que deveria estar presente na vida de todos.

Ótimo filme em muitos sentidos, uma bela história e uma agradável e reconfortante experiência em tempos de tanto preconceito.

[youtube video=”adngT1UNMOY” width=”600″]

Praia do Futuro

Dirigido por Karim Aïnouz

Com Wagner Moura, Clemens Schick, Jesuíta Barbosa, Demick Lopes, Emily Cox, Fred Lima, Ingo Naujoks, Sophie Charlotte Conrad

 

Author

Escritor e Crítico Cinematográfico, membro da Associação Paulista de Críticos de Arte e da Sociedade Brasileira de Blogueiros Cinéfilos.

Comments are closed.