Vivemos uma época altamente politizada, em todos os setores da Sociedade. O Cinema, como uma Arte que reflete seu tempo, não foge à regra e isso pode ser constado ao fazer uma breve análise desta temporada de premiações, Três Anúncios Para um Crimeonde temas como a intolerância, o racismo e, principalmente, o extremismo, estão presentes na maioria das produções indicadas ao Oscar esse ano. Coincidentemente (ou não), este Três Anúncios Para um Crime é mais um a fazer críticas frontais à recente onda de ódio que vem se espalhando no mundo inteiro, mirando não só o racismo e a homofobia, como também a famigerada conduta policial nos Estados Unidos.

Nesse sentido, o brilhante roteiro escrito por Martin McDonagh – cujo reconhecimento internacional, após o excepcional ‘Na Mira do Chefe’, era apenas uma questão de tempo – bate forte nessa tecla, pintando um retrato corajoso da polícia da pequena Ebbing, no estado de Missouri, com fortes tintas preconceituosas e altamente violentas, refletindo uma realidade comum de um país já polarizado. E essa imagem da Polícia é personificada pela figura do oficial Dixon (Sam Rockwell), que encara seu ofício como um mero exercício de punição e opressão, utilizando seu distintivo como uma mera desculpa para sua conduta repulsiva.

Rockwell, um ator altamente talentoso e que há tempos vinha sendo subestimado (vide ‘Confissões de uma Mente Perigosa’ e ‘O Verão da Minha Vida’), tem a melhor oportunidade de sua carreira, e a aproveita com vigor e entrega. Encarnado pelo californiano como um sujeito que parece não entender a gravidade de suas ações, Dixon é um sujeito de modos infantis e que não possui o menor prestígio na cidade, sendo desrespeitado não só por seus colegas de farda, como pelos cidadãos.

Também pudera, além de ainda morar com sua mãe, frequentemente é flagrado fazendo comentários racistas e homofóbicos, porém, e é aí onde reside a grande sacada de Rockwell, demonstra uma inocência genuína, sugerindo não compreender o que faz. E essa inocência é o elemento que impede Dixon de ser detestado pelo espectador, já que não há a menor demonstração de que suas atitudes são tomadas conscientemente. Pelo contrário, Dixon, de fato, não acredita estar fazendo o mal, e basta observar a admiração que tem pelo delegado Willoughby (Woody Harrelson), para perceber uma devoção absoluta, como se realmente venerasse a integridade daquele homem.

E Woody Harrelson, outro ator pouco valorizado, mas que vem sido lembrado nas últimas premiações, é hábil ao evocar toda essa aura benevolente, compondo o delegado como um pai de família amoroso e que, além de competente, compreende a importância de seu dever. Por isso, quando o vemos sentar-se com Mildred (Frances McDormand) para explicar o motivo que o impede de pegar o assassino de sua filha, acreditamos piamente em suas palavras. Empregando um tom de voz suave que, imediatamente, sugere um indivíduo calmo e sereno, Harrelson ainda divide uma cena fundamental com McDormand, onde passamos a entender um pouco mais sobre os dois.

Enquanto isso Frances McDormand é uma força da natureza: sendo apresentada como um ser quase mítico, Mildred Hayes é, desde já, uma das personagens mais icônicas dos últimos anos. Vivida por McDormand com uma força admirável, Mildred parece não ter limites para encontrar o culpado pela morte brutal de sua filha, que foi estuprada enquanto era assassinada. Essa falta de limites a leva a embates frequentes com a polícia local, acreditando que a impunidade lhe dá o direito de provocar ao máximo os oficiais. Tudo o que for possível para que a busca pelo culpado seja retomada. Incapaz de baixar a cabeça até mesmo para um padre (que provoca um ácido discurso da mulher num dos melhores momentos da projeção), ela é mais um personagem complexo, completando uma galeria formidável que faz jus ao sucesso alcançado pelo filme.

Não muito atrás, a direção crua do britânico Martin McDonagh provoca um sádico deleite no espectador, principalmente no brasileiro, já que é difícil não torcer por uma personagem que luta contra a impunidade (ou nosso país é um exemplo de Justiça?). E a forma como conduz o momento em que Dixon invade um estabelecimento para agredir duas pessoas, diz muito sobre suas intenções. McDonagh não é o tipo de cineasta que contorna as consequências provocadas por seus personagens, e mergulha de cabeça numa rica discussão temática que deve provocar uma necessária reflexão.

Além disso, o londrino volta a exibir seu perspicaz humor negro, não abrindo mão de sua principal característica e que foi extraordinariamente explorada em ‘Na Mira do Chefe’. Aqui, por outro lado, ele utiliza a comédia para provocar risos nervosos, quase constrangidos, extraindo graça de situações espinhosas, mas sem deixar de propiciar divertidos momentos que  encontra no nonsense (a pessoa que nega ter ido ao dentista mesmo sob efeitos anestésicos) uma bela válvula de escape. Outra fonte de boas gargalhadas provém do ótimo timing cômico de Sam Rockwell e a infantilidade de seu Dixon.

Entretanto, por mais divertido e fascinante que seja, Três Anúncios Para um Crime merece elogios por sua ousadia temática que, além dos comentários político-sociais, oferece uma estrutura narrativa boa o bastante para permitir arcos dramáticos absolutamente espetaculares, com destaque para o desenvolvimento de Dixon e Mildred, cujos destinos acabam se cruzando mesmo depois de distintos caminhos serem tomados. E o plano final é digno de aplausos (de pé) justamente por ser capaz de sugerir sutilmente uma mudança significativa e que só é possível através da combinação perfeita entre belas atuações e uma direção precisa.

Nesse ínterim, a trilha sonora de Carter Burwell embala a história com temas que remetem à filmografia dos Irmãos Coen, propondo uma referência apropriada e que só ajuda a estabelecer as semelhanças entre esta produção e tantas outras dos cineastas estadunidenses. Com tons melancólicos que jamais soam intrusivos ou exagerados, o delicado trabalho de Burwell só é rivalizado pela belíssima fotografia de Ben Davis (‘Guardiões da Galáxia’) que cria planos sublimes enquanto preza por uma lógica exemplar, e gosto, particularmente, do uso da cor vermelha para marcar uma cena importante no terceiro ato e que se passa na casa de Dixon.

Expondo feridas do início ao fim, ‘Três Anúncios Para um Crime’ é uma audaciosa produção cuja pluralidade temática oferece um rico material para debates, sempre voltando para seu mote, que gira em torno da justiça pelas próprias mãos. Nesse caso, o filme mais uma vez acerta ao jamais tomar partido, deixando para o espectador tirar suas poderosas conclusões, assumindo, apenas, o papel de gatilho, disparando poderosas alegorias que são cada vez mais relevantes em nossa realidade.

Author

Crítico de Cinema e Carioca. Apaixonado pela Sétima Arte, mas também aprecia uma boa música, faz maratona de séries, devora livros, e acompanha futebol. Meryl Streep e Arroz são paixões à parte...

Comments are closed.